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A Voz da Maré

O Rio de Janeiro dos anos 60 era um caldeirão fervente de mudanças sociais e urbanas. Nas favelas cariocas, a luta por melhores condições de vida ganhava força. Foi nesse cenário que emergiu a Federação da Associação de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG) em 1963, símbolo de uma nova era de organização e resistência.


Desde a década de 40, entre as vielas da Maré, nomes como o de Dona Orosina Vieira ressoavam como baluartes da comunidade. A criação da FAFEG marcou um momento crucial para os moradores das favelas. Dona Orosina, com seu semblante firme e voz carregada de autoridade, era uma das principais vozes da Maré. "Precisamos de dignidade" afirmava ela em reuniões com moradores e conversas com autoridades, onde a esperança e a revolta se mesclavam.


A pressão sobre os parlamentares aumentava, e a Maré se organizava politicamente por seus direitos. O golpe militar de 1964 trouxe um período sombrio. As políticas de remoção se intensificaram, e a brutalidade estatal se tornou corriqueira. O Sr. Atanásio, um homem de voz serena, liderou várias ações e protestos contra as remoções arbitrárias. "somos trabalhadores," ele afirmava, enquanto a guarda reprimia a resistência.


Com a criação do Estado do Rio de Janeiro, a FAFEG se transformou na Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ). As lutas continuavam, agora sob uma nova bandeira. O Sr. Zé Careca, uma pessoa de espírito combativo e olhar determinado, despontou como uma liderança carismática. "A favela é nossa casa" dizia em assembleias, enquanto a repressão persistia.

Os anos 80 foram marcados pela continuidade da resistência. As associações de favela intensificaram suas ações, questionando a distância dos conjuntos habitacionais para onde muitos favelizados eram removidos, além da precariedade do transporte público para essas regiões. Dona Orosina, apesar da idade avançada, continuava a ser uma figura de referência. "Nossa luta não é apenas por moradia, é por respeito," afirmava em encontros comunitários.

Nos anos 90, as sementes plantadas nas décadas anteriores começaram a dar frutos. A comunidade da Maré viu melhorias graduais, mas a luta estava longe de acabar. O Sr. Atanásio e Zé Careca passaram a inspirar uma nova geração de líderes comunitários, que davam continuidade ao legado de resistência. "Nós somos a voz dos nossos antepassados," proclamavam jovens líderes em rodas de conversa, relembrando as histórias de luta e resiliência.


Hoje, a Maré é um símbolo de resistência e organização comunitária. A luta por melhores condições de vida continua, inspirada pelos feitos de figuras como D. Orosina, Srº. Atanásio e Zé Careca. A memória coletiva desses líderes fortalece a comunidade na busca incessante por justiça e igualdade.

A história da Maré é a história de uma comunidade que se recusou a ser silenciada. Desde pelo menos 1940, a luta por direitos e dignidade tem sido constante. A organização política da Maré é um testemunho de que a união e a perseverança podem transformar a realidade, mesmo diante das adversidades. A voz da Maré, moldada por décadas de resistência, continua a ecoar, inspirando gerações presentes e futuras.

Texto Ficcional
Autores: Dona Ia e Seu Dias
Arte: pintonorio

Rola Rola



Nas entranhas da Maré, entre os barracos e palafitas que se erguiam como sentinelas da miséria, ecoava o clamor por água. Era uma súplica que se misturava ao vapor dos dias abrasadores e à umidade que se infiltrava pelas frestas dos casebres de madeira.
Foi em meio a esse cenário de privações e desafios que nasceu o "rola rola", uma epopeia silenciosa da resistência humana diante da escassez. Era o ano de 1951, um período em que a seca castigava impiedosamente a região, como se os céus tivessem virado as costas para aqueles que ali habitavam.
A voz de algumas pessoas ressoava como um eco distante, descrevendo a invenção que se tornou o alívio de muitos moradores da Maré. Um grande barril, envolto em dois pneus de caminhão, erguia-se como um monumento à criatividade humana, enquanto um anel de ferro o impulsionava pelos caminhos tortuosos da favela.
O objetivo do "rola rola" era simples e nobre: aliviar o fardo dos moradores na árdua tarefa de buscar água em distâncias que pareciam intransponíveis. Até o outro lado da Avenida Brasil, onde as bicas públicas jorravam sua preciosa carga, os habitantes da Maré enfrentavam uma jornada extenuante em busca do líquido vital.
Nas vielas poeirentas e nas encostas íngremes, o "rola rola" se tornou uma figura familiar, um símbolo de esperança em meio ao desespero. Enquanto o sol brilhava impiedoso sobre os telhados de zinco e as ruas de terra batida, os moradores se agarravam à promessa de um futuro melhor, alimentada pela solidariedade.
Mas, mesmo com o "rola rola" como aliado, a luta pela água potável estava longe de chegar ao fim. As moradias na Maré ainda permaneciam desprovidas de água encanada, uma cicatriz que marcava a paisagem urbana como um lembrete das desigualdades que assolavam a cidade.
Hoje, as palafitas não se erguem mais sobre as águas turvas da baía, mas os antigos moradores são testemunhas de um passado de privações e de uma luta constante pela dignidade humana. Enquanto o "rola rola" se tornou parte da história da Maré, o saneamento básico e o sistema de água ainda são motivo de preocupação para uma parte dos moradores, uma ferida aberta que clama por soluções urgentes.
Assim, nas margens da sociedade, onde a pobreza é uma realidade implacável e a esperança uma luz tênue no horizonte, a cultura material se entrelaça com a memória coletiva, moldando o destino de uma comunidade que teima em sobreviver contra todas as adversidades.

Texto Ficcional
Autores: Dona Ia e Seu Dias
Arte: pintonorio

A Ilha Oculta

Nas profundezas da memória coletiva da Vila dos Pinheiros, reside uma história que hoje poucos puderam dizer que testemunharam.
É um conto antigo, mergulhado nas marés e no tempo, sobre uma ilha resistente entre as águas da enseada de Inhaúma.
Era uma vez a Ilha do Pinheiro, um pequeno paraíso verdejante em meio ao caos urbano do Rio de Janeiro.
 Conhecida pelos moradores antigos como "Ilha dos Macacos" e hoje pelos mais jovens simplesmente como "Mata", essa ilha era o último vestígio do Arquipélago do Fundão, resistindo bravamente aos caprichos do progresso e à voracidade dos homens.
Em 1949, o presidente Getúlio Vargas, instigado pelo ministro da Educação e Saúde Pública Gustavo Capanema, ordenou o aterro da região para a construção da grandiosa Cidade Universitária. 
Mas a Ilha do Pinheiro não cedeu facilmente. 
Firme como um rochedo contra as ondas, resistiu aos avanços da modernidade e aos desejos do "progresso".
No entanto, em 1979, durante os aterros do chamado Projeto Rio, a ilha finalmente sucumbiu. 
As águas que a cercavam foram contidas, e a terra firme se estendeu para abraçá-la. 
Assim, a Ilha do Pinheiro foi anexada ao continente, perdendo sua identidade insular para se tornar parte de algo maior.
Mas o destino da ilha não foi selado ali. 
Sob os interesses da ditadura civil/militar, novos planos foram traçados. 
Habitações populares foram erguidas sobre o solo outrora verde, transformando a paisagem natural em um emaranhado de concreto e ferro.
E assim nasceu a Vila do Pinheiro, um conjunto de moradias modestas que guardava em seu nome a lembrança da ilha perdida. 
Entre as paredes estreitas das casas germinadas, os habitantes da vila seguiam suas vidas, mantendo viva a chama da memória.
Era lá, na Vila do Pinheiro, que a história da Ilha do Pinheiro encontrava um novo capítulo, primeiro como Parque Municipal Ecológico da Ilha  do Pinheiro e a partir de 2021 como Parque Municipal Ecológico Cadu Barcellos.
Entre as ruas e os becos, ouve-se o eco das águas que um dia banharam aquelas terras. 
E mesmo que o passado estivesse enterrado sob o peso do progresso, suas raízes continuariam a se entrelaçar com o presente, lembrando a todos que, por trás de cada tijolo e cada telha, havia uma história de uma antiga ilha para ser contada.

Texto Ficcional
Autores: Dona Ia e Seu Dias

Esperança Junina

Em uma noite fria de junho, na Favela da Maré, um grupo de moradores se reunia em uma pequena sala comunitária para discutir uma ideia que poderia trazer um pouco de esperança para a comunidade da Nova Holanda: uma festa junina para arrecadar fundos para uma creche local.


Entre os presentes estavam professores que sonhavam com um futuro melhor para as crianças da favela, e mães dedicadas que buscava oportunidades para seus filhos.

Decididos a levar adiante o projeto, os moradores organizaram tudo meticulosamente, preparando comidas típicas, montando barracas e planejando atividades para as crianças. No entanto, havia um obstáculo: a necessidade de autorização para fechar a rua onde seria realizada a festa. Com coragem, alguns colegas decidiram ir até o 22º batalhão de Polícia Militar para pedir a autorização necessária. Ao chegarem lá, foram recebidos pelo comandante, que os encarou com desconfiança.

Após ouvir a proposta, o comandante lançou um aviso sombrio: "Eu não vou dar autorização nem vou impedir, se os "meninos" estiverem por perto e houver problemas, a responsabilidade será de vocês". Essa resposta ecoou na mente dos moradores, trazendo à tona as tensões e desafios enfrentados diariamente na favela.

Uma ameaça pairava como uma sombra sobre a festa planejada com tanto carinho para as crianças da comunidade. Enquanto isso, discursos desumanos das autoridades ecoavam como uma sinfonia macabra, reforçando a ideia de que a vida na favela não tinha o mesmo valor que em outros lugares. Palavras que denotavam a desvalorização da vida nas favelas, como se fossem territórios onde as regras da humanidade não se aplicassem completamente.

As frases cruéis e desumanas proferidas por políticos e autoridades ecoavam como um grito de desespero para aqueles que lutavam por dignidade e justiça. Sentiram-se abandonados pelos governos, que pareciam mais preocupado em manter sua "ordem" do que em proteger a vida das crianças da comunidade. No entanto, apesar das adversidades e do constante desrespeito às vidas daqueles que habitavam a favela, a comunidade se uniu em solidariedade e resistência.

No dia da festa junina, as ruas da Nova Holanda se encheram de cores e música. Mesmo com o risco iminente da presença dos "meninos" e da violência que os acompanhava, a comunidade se uniu em um ato de resistência pacífica, mostrando que a solidariedade e o amor podiam superar qualquer obstáculo. A festa junina aconteceu, trazendo alegria e esperança para as crianças e suas famílias, que se recusavam a aceitar a desumanização imposta sobre eles.

Enquanto o mundo exterior continuava a menosprezar suas vidas e a relativizar sua humanidade, os moradores da Favela da Maré se mantinham firmes, lutando por um futuro onde todos fossem reconhecidos como iguais, independentemente de onde vivessem ou de sua condição social. Pois sabiam que, apesar de todas as adversidades, eram seres humanos dignos de respeito e dignidade, e estavam determinados a lutar por um futuro melhor para si e para as gerações vindouras.

Texto Ficcional
Autores: Dona Ia e Seu Dias